quarta-feira, 31 de março de 2010

Mensagem 240


E a mãe a ajeitar-me a colcha com uma voz que perdeu o hábito a dar-me um beijo de boa noite,
- até amanha mãe,
Quando a senhora estiver velha e eu velha, as duas velhas, imagina?,
Você mais pálida, de dedos nos joelhos a embalar-se no passar das horas,
Como a nossa gata mãe, à procura do sol, a rebolar-se no chão e com os olhos perdidos no perder do dia.
E eu a aparecer-lhe à frente de tatuagem no pescoço a mãe com as mãos na cabeça, mas mesmo assim, indiferente, já velha, creio eu, mas eu ainda nova a fazer-lhe uma inveja orgulhosa, creio eu.
As suas rugas, senhora minha mãe, apareceram de repente, primeiro nas mãos e depois a cegarem-lhe os olhos, os seus olhos – que de todos que eu olhei foram os únicos que consegui ver o fundo, que de todos que eu olhei nunca amei outros mais – castanhos escuros a cegarem-me os gestos. E os meus gestos idênticos ao seus, ao acenar e ao ler.
Mas o seu sorriso nunca envelheceu, sempre o mesmo sem uma ruga a mais ou um tremer que
- Nunca antes tinha reparado.
Eu e a senhora um dia seremos velhas, consegue imaginar?, e talvez aí eu admita que tinha razão sobre este dia, ou eu e a senhora velha e eu num canto e você noutro, espelho de nós agora.
Mas, mãe, quem diria, olhos nenhuns como aos seus a fitarem-me do outro lado da mesa, aos pés da cama, e eu a ver neles aquilo que deixou por dizer,
- até amanha mãe.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Mensagem 239

Prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias na nossa vida, até que o tédio nos separe.

Mensagem 238


Que burra que eu fui,
Sem saber como te falar, por que lado me aproximar.
Que burra que eu fui,
A rastejar nas calçadas como forma de me lamber as feridas.
Os segredos que nunca me disseste levo-os para a vida,
De ti, o único que eu realmente alguma vez quis tocar
Mas nunca me deixou chegar.
Os segredos que guardavas nos contornos dos olhos levo-os para a vida,
Dentro do peito.
Dentro do corpo, e quando eu morrer, eles serão dos filhos meus que nunca teus.
Levava-os para o caixão, meu prometido, mas que forma ele teria, para caber-mos os dois?
Ele que tenha uma forma igual aos demais, para nunca ninguém julgar as cicatrizes que a minha pele esconde.
Ele que tenha a tua forma, para então me abraçares uma vez para sempre.

terça-feira, 23 de março de 2010

Mensagem 237


E exactamente antes de te afogares recordaste-te do sabor dos fins de tarde dos domingos. Exactamente antes de te afogares, viste reflectida no espelho a imagem da tua irmã, quando ainda era nova e vivia em casa dos teus pais. A luz dos faróis do carro a entrar pela janela e tu a correres para a porta. As saudades que tiveste senti-as eu nos teus braços, no devagar que eles tomaram aos poucos, a luta que decidiste perder, quando já não eras uma criança mas viste-te no meio de pessoas que nunca te quiseram bem, o teu pai com uma mala na mão – as costas do teu pai a baterem a porta -, quando viste o teu nome na pauta e um reprovado, viste-me a mim a empurrar-te a cabeça. Podia dizer que estou arrependida, mas estaria a mentir.

sábado, 13 de março de 2010

Mensagem 236


E então se morreres como prometeste dentro do meu útero, leva contigo o que eu não posso carregar.
E então, se morreres, leva contigo a cor dos meus olhos e faz com ela o que quiseres, mas não a deixes só. Não a percas para dentro de uma garrafa. Para dentro de outro corpo que não este que te ofereço. E quando eu morrer falas comigo de vez em quando? Para a tua voz me guiar pelos planaltos que a morte me reservar.
E se eu morrer dentro de ti, do teu corpo de homem, fechas-me os olhos sem cor e agarras-me a mão uma última vez? Não tenho medo de em ti morrer, porque não será morte, mas o renascer de tanto amor, de tanta raiva. E se o meu sangue secar carregas-me o nome nos teus lábios? Porque eu nada mais aqui deixo. Só tanto amor, tanta raiva que em mim carrego.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Mensagem 235


E de repente, é tarde de mais. E de repente, tu não estás mais debaixo dos lençóis, a puxar-me a almofada e é manhã mas as persianas estão fechadas, e é sábado e eu estou a jantar sozinha. E é manha outra vez e eu tenho frio, eu disse-te que tinha frio sem ti?, eu disse-te que a pele dos teus pés é áspera? Fazem-me lembrar as mãos do meu pai quando ele segurava nas minhas. Aos domingos de manha, com o Douro a passar-nos ao lado, a esquecer-se de quem nós somos e de que ele é nosso.
E de repente,
- É tarde de mais.
E eu, que parvoíce, a pedir-te para ficares. Agarrada aos extremos de que nós fomos, a atirar-te à cara os nossos primeiros dias, a primeira vez que fomos o que já não somos – e se o fomos alguma vez, como o deixamos ir?,
E depois tu bateste a porta e a fechadura caiu com a força, eu berrei-te da janela, que parvoíce vês?, e tu entraste no carro. Tu voltaste duas semanas depois, eu encontrei-te cá em casa com duas malas semi-cheias em cima da cama, a explicar que encontraste a porta aberta,
- Tu fodeste a fechadura.
Tu a encolher os ombros, como quem não quer saber – mas a porta também ainda é tua, sabes? Sinceramente, tudo aqui ainda é teu, e não, não penses que é, com duas malas de merda que levas tudo – fizeste da tua roupa um monte que atiraste para dentro da mala, levaste as tuas garrafas de wiskey que guardávamos debaixo da cama, a tua escova de dentes e a lâmina de barbear. Fizeste tudo isto sem olhar para mim, sem parar ao meu lado. Eu segui-te pelo corredor de volta ao quarto, depois até ao quarto de banho nos fundos, de volta ao corredor onde reviraste as gavetas do móvel que a minha tia me deu, e depois ao quarto. Todo o tempo em que te segui as costas não me pareceu real, até que ponto a loucura me tomou de arrasto. Quando fechaste as malas:
- Cheira mal. Tudo cheira mal, o quarto e a sala. Até o elevador lá fora cheira mal. Cheira aos dias seguidos que nos fechamos aqui dentro, sem ver o sol sem ver uma pessoa. Cheira aos dias em que tu queimavas o pão, foda-se tu queimavas sempre o pão, ou cheira como daquela vez que queimei o cortinado com o cigarro. Cheira a ti sobre mim, sempre sobre mim, ao vapor do banho. Cheira mal, não sentes?
Os teus pés são ásperos. O teu cabelo sabe a verão. Tens um sinal na parte detrás do pescoço e outro na parte de dentro da anca. São exactamente do mesmo tamanho. Exactamente.