domingo, 17 de agosto de 2008

Mata-me


O teu corpo vestido de preto ao meu lado.
Pronta para morrer, dizes-te tu.
Os teus dedos frios e pálidos a procurarem os meus – uma última vez que é também, de certa forma, uma primeira vez –
Um sorriso cresce nos meus lábios:
A tua morte a fazer-me de companhia,
E pela primeira vez em anos eu sinto-me em boa companhia.
‘Eu admito, menti-te’, digo-te num sussurro que é berro d’ alma.
Menti-te não uma, mas mil vezes, não sou quem tu me achas e o meu nome tem mais duas vogais do que aquelas que tu contas.
Menti-te, e hoje, não me arrependo.
O teu corpo a morrer sentado, velho sem o ser,
Imundo como sempre foi, mas tu sempre o escondeste.
Mas o sangue não sai com água e sabonete
E, por isso, as tuas pupilas e unhas são vermelhas vivas.
O teu corpo a honrar o teu próprio luto,
Não tens medo da morte, mas tens medo que só o Diabo te abra as portas.
Estás a morrer e eu olho-te,
Não me dói,
Não me sufoca,
Nem sequer me comicha.
Vais morrer, amiga minha, já não era sem tempo.
E eu já imagino o teu corpo frio e hirto,
E a saudade a que tudo se vai resumir,
As memórias que não hão-de falar, porque já perderam a voz.
Minha mais querida amiga, estás a morrer. Ouves-me, agora?
Vais ser comida dos insectos que tanto odeias,
As baratas vão rastejar pela tua pele, e comer-te, comer-te
Comer-te,
Comer-te.
Até tu desapareceres.
Os teus dedos desmaiados a procurarem pelos meus.
Porque não vieste antes?
No dia em que eu te pedi a mão?
Menti-te minha puta, quando disse que não fazia mal.
Tu mentiste-me quando me disseste querer bem, quando me pediste para acreditar em ti, mentiste-me, traíste-me, feriste-me.
Morre num luto que eu nunca farei,
E eu chorarei a tua morte como se da minha se tratasse, mas só uma vez e porque fica bem.
Fica sempre bem chorar num funeral.

Ouve-se um (último) suspiro.

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