segunda-feira, 24 de março de 2008

Menina do Papá


Assim lhe chega o ácido aos lábios.
Ácido que é consequência das palavras venenosas que lhe chegaram antes aos ouvidos,
E consequência das dores que eram dela,
Ou pior ainda, das dores que eram de quem ela amava.
Dores e venenos que resultam no que vês agora.
Assim lhe chega o ácido à boca.
E as cicatrizes feitas pela infância incendeiam-se,
E todos os bolos de aniversário queimam-lhe as retinas,
E o cheiro do pai ausente arde-lhe nas narinas.
Assim ela engole o ácido.
E a dor que ela sente não acalma as lembranças das antigas.
Mas ela espera que a ausência de vida o faça.
Ela acredita que esta dor será a última,
E será um ponto final na esperança que nunca acaba.
Assim lhe chega a morte ao corpo,
E num último acto humano ela procura por Deus.
Mas Deus, mais uma vez, não está presente.
E num último acto de menina, ela chora,
Mas as lágrimas não são remédio ou cura.
Assim lhe chega o grito à boca.
Mas, mais uma vez, ninguém ouve.
Assim lhe chega o sangue aos olhos.
Assim lhe chega o ácido ao estômago.
Assim lhe é negado oxigénio.
E ela lembra-se do sol de outros tempos,
Dos grilos e pirilampos das noites de verão.
Ela lembra-se da barba do pai e dos beijos de boa noite da mãe.
Ela lembra-se dos amigos e dos inimigos,
Ela lembra-se dos motivos que a fizeram hoje desistir
E dos motivos para continuar.
E como ela chora e como ela berra,
Mas Deus, mais uma vez, não está presente.
Ela tinha um sorriso triste,
Tinha mãos pequeninas e as unhas ruídas.
Ela dormia sempre para o lado direito e era canhota.
Tinha jeito para a cozinha e para os números.
Ela gostava de iogurtes de ananás.
Mas ela não sabia cantar ou desenhar.
Ela era uma menina tímida, diziam.
Ela não gostava de espelhos ou de ver televisão.
Ela não gostava da escola ou do mundo.
E dizia que a escola e o mundo não gostavam dela.
Mas, antes de qualquer coisa, ela era a menina dos olhos do papá,
Ela era a razão de viver da mamã.

terça-feira, 18 de março de 2008

Vampiros


Ouvi dizer que partiste.
Que agarraste em dois pares de meias limpas, um revólver e duas balas.
Escreveste um bilhete de despedida, que facilmente se confundia com a confissão de um doido qualquer.
Deixaste a tua casa exactamente da mesma forma em que a deixaste antes de adormecer.
Não arrumaste a roupa limpa nem fizeste a próxima máquina.
Havia louça por lavar e um copo de água sobre a mesa. E silêncio. Muito silêncio.
Como se a casa estivesse ofendida por ter sido abandonada. A luz amarela-seca, assinada pelo Outono, reflectia na tijoleira do chão da sala. O gato malhado enroscava-se perto da porta. Parecia estar à espera, contudo não lhe sei entender a língua, não sei entender a língua dos gatos nem a dos loucos, se calhar é por isso que havia tanta confusão entre nós.
O sofá de três lugares, ainda tinha a forma das tuas costas no meio, e eu imaginei-te sentado acompanhado pela solidão á direita e pela loucura á esquerda, e imaginei o teu corpo onde as duas se juntavam e tentavam, tentavam, ser felizes.
Disseram-me, em tom de aviso, que levaste duas balas de prata. E eu ri-me baixinho, tão baixinho que se tornou choro. Achei que quando me chamavas ‘vampira’ era um segredo, era por carinho. Ri-me alto, tão alto que se tornou pânico. A luz seca outonal que alugou a tua casa como cama e sanita arrepia-me a pele. A forma como ela entrava pela janela, atravessava as cortinas claras e caía no chão, sem pedir permissão. E a quem pedir? Se tu saíste com a pressa de um caracol filho de uma hiena.
Sento-me do lado direito do sofá, para contornar a solidão com as minhas formas. O silêncio da casa ecoa dentro do meu corpo, e vejo as horas passar no descair da luz ou no ronronar rouco do gato gordo. A casa esconde-se no adeus do lusco-fusco, e as paredes ganham a pigmentação azulada, como se alguém pouco divertido escurecesse o bege. E, insatisfeito, arrefecesse o ar dentro da tua casa, o ar que inspiraste e expiraste vezes sem conta. O gato aninha-se junto das minhas pernas talvez para me aquecer ou para se aquecer, e eu deixo-me rir baixinho. Não tenho medo das tuas balas, mas tenho medo da tua ausência. Da tua ausência que me perfura mais fundo do que espadas ou traições. Da tua ausência que me rouba mais que perguntas sem resposta, ou as manhãs de Terça.
O gato enrola-se e os meus olhos fecham-se como cortinas no fim do espectáculo. Acabou, foste embora.
A toalha de banho está atirada para cima da cama desfeita, e fica assim: imóvel, silenciosa como uma fotografia tirada depois do por do sol.
O ronronar do gato desfase-se no sono profundo. Mas o silêncio mantém-me acordada, atenta à porta de entrada ou à da garagem lá em baixo.
O dia começa a afastar-se e os números do relógio digital que a tua mãe te ofereceu na Páscoa ou no Natal acentuam-se mais agora. Mas eu vejo-os desfocados, e o quadro em tons de vermelho e preto em cima da lareira fria ganha vida. Assombra-me por cima da minha cabeça mas não me defendo. Nunca tinha reparado nele antes, nunca tinha reparado como a tua desarrumação é organizada, como se espalhasses segundo um padrão.
Ao pé do relógio digital, em cima da mesinha de café de vidro, está a caixinha de madeira onde guardavas as balas e o revólver, a forma das três estão vazias. Nem fechaste a caixa na pressa de fugir. Fugir.
O bilhete de despedida jaz a centímetros da caixa, não te diriges a ninguém começas a carta com a data do dia de hoje e dizes ‘não me procurem’, não é só a mim que pedes que te esqueça, mas ao mundo todo. Mas não sabes que para o mundo todo é mais fácil esquecer-te do que é para mim.
A casa fecha-se dentro dela própria, a tua ausência racha as paredes e gela os móveis. Prende-me ao chão como cola. Prende-me a ti como impressão digital. E é verdade, é real, é tocável.
Um dia quando te abandonarem vais entender o valor da verdade e do real, do tocável do que se pode guardar no céu-da-boca ou escondido dentro da gaveta da roupa interior. Um dia quando te abandonarem e deixarem um bilhete rabiscado e um gato malhado vais saber o valor das recordações, vais saber que só elas têm força para aguentar com o peso de uma casa extinta.

terça-feira, 11 de março de 2008

"My care for you is from the ground up to above"


Escrevo-te esta carta, numa forma de rendição pessoal. Em nada, ela é uma ofensa ou uma afronta ao que alguma vez tivemos. Se fizeres questão de a denominares então que ela seja um pedido de retorno, ou simplesmente uma carta. Não precisares de lhe dar mais importância do que ela realmente tem, nem precisas de mudar nada por ela existir. É só mais uma carta.
Há pouquinha coisa para te contar, mas a monotonia é algo que também merece ser referida, por isso, e para não faltar ao respeito a ninguém, deixa-me roubar-te um bocadinho de tempo para te dizer que os dias dobram-se em mim, que eu não aproveito nada e sei-o (e isso é o que mais dói) e nada faço para o mudar. Ou por outro lado, tudo o que faço não é suficiente. Simplesmente não é suficiente.
Não me deixes mentir e dizer-te que estou ou sou feliz, não estou ou sou, e a culpa não é meramente tua ou minha. A culpa é das pessoas que me rodeiam e me sugam, trincam, roubam e matam. Nestes últimos anos pouco descobri, no entanto todo o conhecimento que adquiri, só me serviu para me afogar em lágrimas; os amigos que eu pensei ter, revelaram-se seres humanos em decomposição. E eu não te digo isso como informação despropositada mas sim, porque também descobri que a decomposição é contagiante, e o medo da minha morte fez-me querer despedir. Não de ti e muito menos de mim (que saudades posso eu ter minhas?) mas sim das oportunidades e sortes, de todas elas, das que eu vi e perdi, das que agarrei, das que eu nem sequer reconheci ou daquelas que ainda estariam guardadas para mim. Talvez então me esteja a despedir de mim e de ti, porque considero-te a única pessoa que eu alguma vez amei por inteiro e de mim, porque me considero, apesar de tudo, a minha única companhia constante.
Eu vomito o meu coração aqui para te fazer entender ou, alguém que queira saber, que eu aprendi a abraçar quem me repugna a alma.
Que tipo de ser racional sou eu, se o meu mundo se baseia em pessoas que eu não amo por em elas não encontrar razoes para isso? Que tipo de futuro teria eu se todo o amor que eu tenho para dar, se esgotar em pessoas que eu não reconheça como merecedoras?
Tu sabes que eu não gosto de fazer perguntas, principalmente pelas respostas. Mas sinto que, de certa forma, está na altura de fazer algumas. O prazo da validade das minhas palavras expirou e como o silêncio não fica bem a ninguém, decidi escreve-las na mesma, ignorando a podridão latente que lhes soa nos sinais de pontuação.
Mas, por outro lado, nada dura para sempre. E eu aceito-o apesar de não o querer ou entender. Mas melhor que ninguém eu sei que as relações humanas podem-se tornar prisões. E, mais que qualquer outra pessoa, eu não aguentaria a prisão como morada. Por isso, e visto que me sinto presa de todas as formas que eu poderia estar, eu revolto-me à minha sina e aos caprichos de todos aqueles que me sugam, trincam, roubam ou matam. Eu sei que não posso, que não me é permitido, mas eu não consigo mais. Simplesmente eu desisto.
Eu sei que conto com o teu apoio, apesar de aqui não estares, estás em mim, no meu sangue e na minha pele. A tua ausência não consegue apagar a tua presença passada, é exactamente para isso que as memórias servem, para te ressuscitar ou não te deixar morrer. Para te manter aqui, e tu me manteres a mim viva. Estejas onde estiveres, a dormir, a comer, a sorrir ou chorar, tu estás em mim enquanto a vida me fizer companhia.
Estes anos fizeram-me entender certas coisas, e eu descobri em mim uma enorme paciência. Mas ela tem-se revelado mais uma fraqueza que um qualidade desde que tu deixaste este circulo vicioso. E eu prometo-te, que nada em mim te pede mais do que tu me tens para dar, e esta carta não é mais do que um desabafo piroso, um escape ao ódio que eu ganhei daqueles que enganei com amor.
Eu juro-te que te amei, de uma forma imensa e eterna. Eu juro-te que ainda te amo, de uma forma trágica e nostálgica. Eu juro-te que hei-de sempre te amar da forma que me for possível e necessária.

segunda-feira, 3 de março de 2008

a.C

Houve tempos,
Em que eu me perguntava se te tinha perdido.

Mas esses tempos são agora distantes,

E o presente tratou de os apagar aos poucos.
Hoje,

Eu pergunto-me se me perdi a mim mesma.
Se nesses navios,
Que tu chamavas de teus,

Me levaste a mim.
E se eu não me lembro de navegar á proa contigo
É porque me atiraste borda fora.

Se calhar a explicação para o meu estado de espírito é mesmo essa.

Eu não me sinto,

Não sinto sangue nem vida em mim.

Aqueles que eu amei e amo

Começam a saber-me a pouco, ou a muito.

Nesses tempos,

Nos teus tempos,
Eu tinha o suficiente, não tinha?

Tinha os teus navios,

Que eu chamava de meus,

Tinha os mares que nós chamávamos de nossos.

E tinha dois pés e duas mãos,
Para quando me fartasse do mar

E preferisse a terra firme.
Inocência minha pensar que podia voltar.
Maldade tua não me avisares que eu não podia.
Mas o mundo enterrou-nos aos poucos, e as dores da tua voz tornaram-se da minha ignorância.

A minha forma de vida baseia-se nas mentiras com que tu me alimentas.

E, para o caso de tu duvidares, eu não considero mentiras pecado ou algo de mau tom,
Eu sei que as que tu me dás são para o meu próprio bem,

E eu sei que elas são cura de muitas doenças,
Base de muitos casamentos,

E concordância de muitas pazes.

Mas eu sei também

Que elas são leito de muitas mortes.
Hoje,

Tu não me envolves na mesma áurea.

E o amor que eu algum dia te dei,

Por mais grandioso que ele tenha sido,

Secou-me do corpo.

De dentro dele, das profundezas dele.
O que restou
E o que eu ainda te dou,

É o resultado do meu esforço para não te deixar ir, ou a mim, ou seja lá o que for que mantêm as pessoas juntas, presas.
Mas hoje eu pergunto-me se me terei perdido, se o último ano, não terá sido um deslize na minha vida.

Um deslize que eu tomei por iniciativa própria.
Tudo o que de bom eu tive um dia, perdi.

E essa perda,

Torna-me vazia e estática.

Sem vida, cor ou luz.

Os meus sentimentos não estão balançados,

E tudo em mim é demasiado.

Eu não te censuro se partiste num dos teus grandes navios.

Mas contentava-me saber que ainda te lembras de mim.

Das palavras que eu te berrei ou murmurei.

Que eu te roubei ou ofereci.

Desafogava-me saber onde aportaste,
Se te tornaste um típico marinheiro com uma mulher em cada porto,

Ou então um solitário, com saudades de casa.

Da nossa casa.

Os esforços que eu faço para me conter na brandura do que me permitem,
Torna-me aos pouquinhos louca.
Todas as minhas acções que me podem incriminar,
Tiram-me o sono e queimam-me o estômago,

Mas isso não as impede de (e não te rias das minhas crenças) condenar-me ao inferno ou algo que se assemelhe.

Eu tenho a intenção de te escrever uma carta onde te peça perdão, onde te diga que me fazes falta, que rezo por ti.

Que quero, quero tanto, que voltes para mim.

Que voltes para a nossa casa.

Eu tenho dado de comer ao gato e regado as plantas.

A chave está onde tu a deixaste e os lençóis estão lavados.

Houve tempos,

Mas já não os há.