Ouvi dizer que partiste.
Que agarraste em dois pares de meias limpas, um revólver e duas balas.
Escreveste um bilhete de despedida, que facilmente se confundia com a confissão de um doido qualquer.
Deixaste a tua casa exactamente da mesma forma em que a deixaste antes de adormecer.
Não arrumaste a roupa limpa nem fizeste a próxima máquina.
Havia louça por lavar e um copo de água sobre a mesa. E silêncio. Muito silêncio.
Como se a casa estivesse ofendida por ter sido abandonada. A luz amarela-seca, assinada pelo Outono, reflectia na tijoleira do chão da sala. O gato malhado enroscava-se perto da porta. Parecia estar à espera, contudo não lhe sei entender a língua, não sei entender a língua dos gatos nem a dos loucos, se calhar é por isso que havia tanta confusão entre nós.
O sofá de três lugares, ainda tinha a forma das tuas costas no meio, e eu imaginei-te sentado acompanhado pela solidão á direita e pela loucura á esquerda, e imaginei o teu corpo onde as duas se juntavam e tentavam, tentavam, ser felizes.
Disseram-me, em tom de aviso, que levaste duas balas de prata. E eu ri-me baixinho, tão baixinho que se tornou choro. Achei que quando me chamavas ‘vampira’ era um segredo, era por carinho. Ri-me alto, tão alto que se tornou pânico. A luz seca outonal que alugou a tua casa como cama e sanita arrepia-me a pele. A forma como ela entrava pela janela, atravessava as cortinas claras e caía no chão, sem pedir permissão. E a quem pedir? Se tu saíste com a pressa de um caracol filho de uma hiena.
Sento-me do lado direito do sofá, para contornar a solidão com as minhas formas. O silêncio da casa ecoa dentro do meu corpo, e vejo as horas passar no descair da luz ou no ronronar rouco do gato gordo. A casa esconde-se no adeus do lusco-fusco, e as paredes ganham a pigmentação azulada, como se alguém pouco divertido escurecesse o bege. E, insatisfeito, arrefecesse o ar dentro da tua casa, o ar que inspiraste e expiraste vezes sem conta. O gato aninha-se junto das minhas pernas talvez para me aquecer ou para se aquecer, e eu deixo-me rir baixinho. Não tenho medo das tuas balas, mas tenho medo da tua ausência. Da tua ausência que me perfura mais fundo do que espadas ou traições. Da tua ausência que me rouba mais que perguntas sem resposta, ou as manhãs de Terça.
O gato enrola-se e os meus olhos fecham-se como cortinas no fim do espectáculo. Acabou, foste embora.
A toalha de banho está atirada para cima da cama desfeita, e fica assim: imóvel, silenciosa como uma fotografia tirada depois do por do sol.
O ronronar do gato desfase-se no sono profundo. Mas o silêncio mantém-me acordada, atenta à porta de entrada ou à da garagem lá em baixo.
O dia começa a afastar-se e os números do relógio digital que a tua mãe te ofereceu na Páscoa ou no Natal acentuam-se mais agora. Mas eu vejo-os desfocados, e o quadro em tons de vermelho e preto em cima da lareira fria ganha vida. Assombra-me por cima da minha cabeça mas não me defendo. Nunca tinha reparado nele antes, nunca tinha reparado como a tua desarrumação é organizada, como se espalhasses segundo um padrão.
Ao pé do relógio digital, em cima da mesinha de café de vidro, está a caixinha de madeira onde guardavas as balas e o revólver, a forma das três estão vazias. Nem fechaste a caixa na pressa de fugir. Fugir.
O bilhete de despedida jaz a centímetros da caixa, não te diriges a ninguém começas a carta com a data do dia de hoje e dizes ‘não me procurem’, não é só a mim que pedes que te esqueça, mas ao mundo todo. Mas não sabes que para o mundo todo é mais fácil esquecer-te do que é para mim.
A casa fecha-se dentro dela própria, a tua ausência racha as paredes e gela os móveis. Prende-me ao chão como cola. Prende-me a ti como impressão digital. E é verdade, é real, é tocável.
Um dia quando te abandonarem vais entender o valor da verdade e do real, do tocável do que se pode guardar no céu-da-boca ou escondido dentro da gaveta da roupa interior. Um dia quando te abandonarem e deixarem um bilhete rabiscado e um gato malhado vais saber o valor das recordações, vais saber que só elas têm força para aguentar com o peso de uma casa extinta.
Que agarraste em dois pares de meias limpas, um revólver e duas balas.
Escreveste um bilhete de despedida, que facilmente se confundia com a confissão de um doido qualquer.
Deixaste a tua casa exactamente da mesma forma em que a deixaste antes de adormecer.
Não arrumaste a roupa limpa nem fizeste a próxima máquina.
Havia louça por lavar e um copo de água sobre a mesa. E silêncio. Muito silêncio.
Como se a casa estivesse ofendida por ter sido abandonada. A luz amarela-seca, assinada pelo Outono, reflectia na tijoleira do chão da sala. O gato malhado enroscava-se perto da porta. Parecia estar à espera, contudo não lhe sei entender a língua, não sei entender a língua dos gatos nem a dos loucos, se calhar é por isso que havia tanta confusão entre nós.
O sofá de três lugares, ainda tinha a forma das tuas costas no meio, e eu imaginei-te sentado acompanhado pela solidão á direita e pela loucura á esquerda, e imaginei o teu corpo onde as duas se juntavam e tentavam, tentavam, ser felizes.
Disseram-me, em tom de aviso, que levaste duas balas de prata. E eu ri-me baixinho, tão baixinho que se tornou choro. Achei que quando me chamavas ‘vampira’ era um segredo, era por carinho. Ri-me alto, tão alto que se tornou pânico. A luz seca outonal que alugou a tua casa como cama e sanita arrepia-me a pele. A forma como ela entrava pela janela, atravessava as cortinas claras e caía no chão, sem pedir permissão. E a quem pedir? Se tu saíste com a pressa de um caracol filho de uma hiena.
Sento-me do lado direito do sofá, para contornar a solidão com as minhas formas. O silêncio da casa ecoa dentro do meu corpo, e vejo as horas passar no descair da luz ou no ronronar rouco do gato gordo. A casa esconde-se no adeus do lusco-fusco, e as paredes ganham a pigmentação azulada, como se alguém pouco divertido escurecesse o bege. E, insatisfeito, arrefecesse o ar dentro da tua casa, o ar que inspiraste e expiraste vezes sem conta. O gato aninha-se junto das minhas pernas talvez para me aquecer ou para se aquecer, e eu deixo-me rir baixinho. Não tenho medo das tuas balas, mas tenho medo da tua ausência. Da tua ausência que me perfura mais fundo do que espadas ou traições. Da tua ausência que me rouba mais que perguntas sem resposta, ou as manhãs de Terça.
O gato enrola-se e os meus olhos fecham-se como cortinas no fim do espectáculo. Acabou, foste embora.
A toalha de banho está atirada para cima da cama desfeita, e fica assim: imóvel, silenciosa como uma fotografia tirada depois do por do sol.
O ronronar do gato desfase-se no sono profundo. Mas o silêncio mantém-me acordada, atenta à porta de entrada ou à da garagem lá em baixo.
O dia começa a afastar-se e os números do relógio digital que a tua mãe te ofereceu na Páscoa ou no Natal acentuam-se mais agora. Mas eu vejo-os desfocados, e o quadro em tons de vermelho e preto em cima da lareira fria ganha vida. Assombra-me por cima da minha cabeça mas não me defendo. Nunca tinha reparado nele antes, nunca tinha reparado como a tua desarrumação é organizada, como se espalhasses segundo um padrão.
Ao pé do relógio digital, em cima da mesinha de café de vidro, está a caixinha de madeira onde guardavas as balas e o revólver, a forma das três estão vazias. Nem fechaste a caixa na pressa de fugir. Fugir.
O bilhete de despedida jaz a centímetros da caixa, não te diriges a ninguém começas a carta com a data do dia de hoje e dizes ‘não me procurem’, não é só a mim que pedes que te esqueça, mas ao mundo todo. Mas não sabes que para o mundo todo é mais fácil esquecer-te do que é para mim.
A casa fecha-se dentro dela própria, a tua ausência racha as paredes e gela os móveis. Prende-me ao chão como cola. Prende-me a ti como impressão digital. E é verdade, é real, é tocável.
Um dia quando te abandonarem vais entender o valor da verdade e do real, do tocável do que se pode guardar no céu-da-boca ou escondido dentro da gaveta da roupa interior. Um dia quando te abandonarem e deixarem um bilhete rabiscado e um gato malhado vais saber o valor das recordações, vais saber que só elas têm força para aguentar com o peso de uma casa extinta.
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