O que me fode mesmo são as outras gajas, sabes Manel? É imagina-las: jovens e magras, ainda a receberem a mesada do papá e a estudarem para os exames de matemática. Isso sim, dá-me cabo da cabeça. Quando vou almoçar com as meninas, até nos rimos da tua cara. Literalmente. Da tua monocelha e do bigode – que apesar de eu ter pedido, chantageado – tu decidiste deixar crescer.
Também nos rimos da tua maneira de rir. Arranjaste cá uma maneira, parecias uma hiena, ou uma foca, ou o bicho que nascia se os dois bichos andassem no truca-truca. Realmente até me admira que tenhas conseguido cravar o dente naquelas miúdas, seu Bibi. Até chego a ter pena delas, menos da Raquel, a essa podia-lhe cair o Carmo, a santíssima trindade e ainda o mundo em cima que eu cá não tinha pena nenhuma, e ainda lhe cuspia em cima.
Pois é Manel, arranjaste-as bonitas agora: a trazer a miúda cá a casa, com o cu a abanar e as cuecas de fora, se aquilo não estivesse a acontecer comigo até me tinha rido. Mas o caso era para chorar, não para rir. Só naquele momento, em que o bisonte me entra pela casa, é que me apercebi que tu me tinhas deixado. Abandonado. Desamparado. Todas as palavras que rodeiam a solidão. E lá entrou ela, com a mostarda no nariz a apontar-me o dedo. A mim, e a todas as “merdas rafeiras” que temos cá em casa. Pois fica sabendo, meu querido, que estas “merdas” foram compradas com as melhores das intenções, escolhidas a dedo. Sempre quis que tu e os miúdos se sentissem bem na casa que nós construímos, sempre fiz tudo o que pude para isso. Se não temos coisas mais bonitas é porque passamos por tempos difíceis, como tu sabes, como os miúdos – infelizmente – sabem. Mas como a Raquel ou as outras nunca poderão saber. E sabes, eu também tenho muita pena em não ter coisas mais bonitas, em não me vestir com coisas mais alegres em vez destes trapos que comprei quando ainda era solteira, mas quando me casei contigo prometi-te amar eternamente, até que a morte (e não a Raquel) nos separe, e amar dessa forma significa fazer sacrifícios, e eu fi-los. Já lá vão anos que eu não compro uma coisinha bonita para mim, tudo o que eu compro é para os miúdos e para ti, e isso deixa-me muito triste; ter que ir almoçar com as meninas com uns sapatos velhos ou com uma roupa gasta. Ir para o trabalho e ver-me ser pisada por meninas iguais às tuas amigas só porque elas tem maquilhagem e roupa mais bonita. É um mundo frio aquele lá fora, sabes Manel? É esse mundo que eu tentei sempre deixar fora da nossa casa, para os miúdos crescerem e serem mais que senhores doutores, serem Homens com H grande, como tu já foste. Tanto trabalho para nada, porque um dia estou eu muito descansada, a arrumar a cozinha, e tu entras-me com esse mundo frio pela mão, com o fio dental a sair das calças. Que vergonha Manel, que vergonha. Que desilusão. Logo tu que sempre me fizeste agradecer a Deus por te deitares ao meu lado, que adormecias de olhos abertos quando o Ricardo era pequeno e tinha medo de tudo, que te levantavas ao domingo de madrugada para veres os desenhos na televisão com os miúdos.
Que fiz eu? Eu nunca fui o tipo de mulher que tem “dores de cabeça”, nunca fui fria, e até me dou bem com a tua mãe que é uma bela peça de senhora. Eu nunca gastei mais do que tínhamos, nunca te deixei à espera, menti, ou embirrei sem motivo. Sempre estive do teu lado e fui uma boa mãe. Se envelheci Manel, pois bem, tu também, e eu não te abandonei por causa disso. Eu tive dois filhos teus e uma vida a passar por dentro do meu corpo, que querias tu?
Aqui estou eu, às duas da manha na nossa casa vazia, escura e fria. Sempre pensei que íamos os dois envelhecer nela, juntos. A lutar todos os dias contra a injustiça da velhice, a relembrar-nos mutuamente a grandeza do que fomos. Mas parece que eu vou morrer sozinha numa casa grande de mais, que um dia já me pareceu pequena.
Fui tua mulher durante trinta e dois anos. Trinta e dois anos. Catorze, vivi eu com o teu bigode, que por mais ridículo que seja, eu sinto falta. Sinto também falta do teu cheiro, e de noite quando eu tenho a certeza que nem Deus está a ver, eu cheiro a tua almofada e choro. Choro e berro, num desespero que me é proibido. Trinta e dois anos. Isso é uma vida. Eu tenho uma vida para chorar e fazer luto. E enquanto eu faço esse luto tu andas-me às cambalhotas com as Raquéis. Isso sim, é que me fode mesmo a cabeça. E foi isso que me fez mudar as fechaduras, aqui não voltas a meter o pé. Que é para ver se aprendes e deixas de ser parvalhão. Deves achar que eu me chamo Raquel, não?
Também nos rimos da tua maneira de rir. Arranjaste cá uma maneira, parecias uma hiena, ou uma foca, ou o bicho que nascia se os dois bichos andassem no truca-truca. Realmente até me admira que tenhas conseguido cravar o dente naquelas miúdas, seu Bibi. Até chego a ter pena delas, menos da Raquel, a essa podia-lhe cair o Carmo, a santíssima trindade e ainda o mundo em cima que eu cá não tinha pena nenhuma, e ainda lhe cuspia em cima.
Pois é Manel, arranjaste-as bonitas agora: a trazer a miúda cá a casa, com o cu a abanar e as cuecas de fora, se aquilo não estivesse a acontecer comigo até me tinha rido. Mas o caso era para chorar, não para rir. Só naquele momento, em que o bisonte me entra pela casa, é que me apercebi que tu me tinhas deixado. Abandonado. Desamparado. Todas as palavras que rodeiam a solidão. E lá entrou ela, com a mostarda no nariz a apontar-me o dedo. A mim, e a todas as “merdas rafeiras” que temos cá em casa. Pois fica sabendo, meu querido, que estas “merdas” foram compradas com as melhores das intenções, escolhidas a dedo. Sempre quis que tu e os miúdos se sentissem bem na casa que nós construímos, sempre fiz tudo o que pude para isso. Se não temos coisas mais bonitas é porque passamos por tempos difíceis, como tu sabes, como os miúdos – infelizmente – sabem. Mas como a Raquel ou as outras nunca poderão saber. E sabes, eu também tenho muita pena em não ter coisas mais bonitas, em não me vestir com coisas mais alegres em vez destes trapos que comprei quando ainda era solteira, mas quando me casei contigo prometi-te amar eternamente, até que a morte (e não a Raquel) nos separe, e amar dessa forma significa fazer sacrifícios, e eu fi-los. Já lá vão anos que eu não compro uma coisinha bonita para mim, tudo o que eu compro é para os miúdos e para ti, e isso deixa-me muito triste; ter que ir almoçar com as meninas com uns sapatos velhos ou com uma roupa gasta. Ir para o trabalho e ver-me ser pisada por meninas iguais às tuas amigas só porque elas tem maquilhagem e roupa mais bonita. É um mundo frio aquele lá fora, sabes Manel? É esse mundo que eu tentei sempre deixar fora da nossa casa, para os miúdos crescerem e serem mais que senhores doutores, serem Homens com H grande, como tu já foste. Tanto trabalho para nada, porque um dia estou eu muito descansada, a arrumar a cozinha, e tu entras-me com esse mundo frio pela mão, com o fio dental a sair das calças. Que vergonha Manel, que vergonha. Que desilusão. Logo tu que sempre me fizeste agradecer a Deus por te deitares ao meu lado, que adormecias de olhos abertos quando o Ricardo era pequeno e tinha medo de tudo, que te levantavas ao domingo de madrugada para veres os desenhos na televisão com os miúdos.
Que fiz eu? Eu nunca fui o tipo de mulher que tem “dores de cabeça”, nunca fui fria, e até me dou bem com a tua mãe que é uma bela peça de senhora. Eu nunca gastei mais do que tínhamos, nunca te deixei à espera, menti, ou embirrei sem motivo. Sempre estive do teu lado e fui uma boa mãe. Se envelheci Manel, pois bem, tu também, e eu não te abandonei por causa disso. Eu tive dois filhos teus e uma vida a passar por dentro do meu corpo, que querias tu?
Aqui estou eu, às duas da manha na nossa casa vazia, escura e fria. Sempre pensei que íamos os dois envelhecer nela, juntos. A lutar todos os dias contra a injustiça da velhice, a relembrar-nos mutuamente a grandeza do que fomos. Mas parece que eu vou morrer sozinha numa casa grande de mais, que um dia já me pareceu pequena.
Fui tua mulher durante trinta e dois anos. Trinta e dois anos. Catorze, vivi eu com o teu bigode, que por mais ridículo que seja, eu sinto falta. Sinto também falta do teu cheiro, e de noite quando eu tenho a certeza que nem Deus está a ver, eu cheiro a tua almofada e choro. Choro e berro, num desespero que me é proibido. Trinta e dois anos. Isso é uma vida. Eu tenho uma vida para chorar e fazer luto. E enquanto eu faço esse luto tu andas-me às cambalhotas com as Raquéis. Isso sim, é que me fode mesmo a cabeça. E foi isso que me fez mudar as fechaduras, aqui não voltas a meter o pé. Que é para ver se aprendes e deixas de ser parvalhão. Deves achar que eu me chamo Raquel, não?
1 comentário:
Desesperantemente cativante.
(peço dsclp pela intromissão à bruta, ms este n deixa nng indiferente.)
:)
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