terça-feira, 16 de outubro de 2007


Ai que não posso mais,
Ai que não posso mais apesar de estar a dizer
Que não posso mais há não sei quantos anos,
"Parem! Parem! Parem! Parem por amor de deus, parem!"
Diz uma voz perdida no meio da avenida
Que arranca os cabelos brancos da sua nuca, nuca maluca.
E as pessoas passam, passam,
Passam por ele, passam pelo lado dele, por cima dele,
Por baixo dele, pelo meio dele,
Que desenfreada manada de elefantes em pânico, em marcha à frente
Em sentido contrário, correndo, esmagando, a calçada com as suas gigantes
E pesadas solas e tacões de borracha.
Passam e ele grita-se.
Passam e cospem-lhe olhares de pena, ódio, desprezo, que nojo
Esta avenida está toda porca, incredulidade compaixão,
Espanto até altruísmo, quando no fundo todos escondem
Bem escondidinho o entendimento amargo.
Amargo? Amargo não,
Talvez se lhe atirassem uma moeda de metal àquela fuça
Ele fechasse a matraca
Talvez, mas eu quero comprar, vender, comer, fazer, fazer, fazer,
Andar, sim, andar, porque parar é morrer, portanto andemos,
Andemos que a nossa vida é conjunto de verbos,
O ser é um conjunto de verbos, verbalizar, verbalizar,
E nem o homem parará, nem mesmo quando a voz lhe fugir,
Ele falará por gestos, por fumo, por ASCII, por XML, por morse.
E fala, e todos queremos falar, todos queremos fazer dissertações,
Discursos, prefácios, posfácios, tudo isso no menor tempo possível
O cronómetro está a contar, o cronómetro está sempre a contar
Tic, tac, tic, tic, tac, merda, já estou atrasada, tic, tac, tic,
Estamos todos atrasados, minha querida, ainda não sei é para quê
Tic, tic, tic, tac, como o outro dizia, queremos fazer do segundo a eternidade
e da eternidade o segundo e acabamos por fazer do segundo o milissegundo,
Rápido, desçamos a avenida, subamos a avenida, escavemos avenida,
Bebamos a avenida, sim sempre, sempre, vamos lá, vamos lá, não olhem
Não há nada aqui para ser visto, rodopiem o olhar, oh senhor polícia
Deviam mas é tirar estes loucos das ruas, o quê?
Está a falar demasiado rápido, nada, esqueça senhor policia, esqueço,
Claro que esqueço, esqueço a minha vida inteira
Nos quilómetros que percorro,
Quilómetros para a morte,
Para parar.
Aí talvez possamos pensar,
Pensar em vida não que horror, não quero, não há tempo, Deus.
Que deus? Deus que me pague venha fazer este inventário, Deus
Que me trata dos filhos, que me faça o sudoku,
Deus ainda é mais inútil que a minha avó, velha que nem um poio seco,
Ai meu Deus que esta avenida nunca mais acaba
Ai que me dói a cabeça, calem-me aquele homem, de caminho quem lhe
Pára a cara sou eu, mas primeiro tenho de ir às putas, quero fazer sexo,
Sexo, sexo, sexo, porra sexo não é um verbo por si só, quero sexar então,
Se sexar sou ser, sou ser e não páro, sexar mas depressinha
Senão o patrão despede-me, puta que o pariu, (não tu), não consigo sexar
Com aquele homem a gritar-se, fechaste as janelas? Sim?
Parece que ele está aqui dentro,
Arranjemos um quarto longe desta avenida,
A avenida está podre, meu amigo, a avenida está podre
Com bolor por dentro e por fora, gasta e exausta,
E a podridão é contagiosa,
Sim, vai dos homens para as construções dos homens
E das construções dos homens para os homens outra vez
Ciclos viciosos daqueles que eles falam na televisão,
Vamos para casa, é tarde e o café já acabou.
Está de noite, uma bela noite, daquelas escuras
Escuras como o vinho tinto da garrafa,
Será que nem à noite aquele homem se cala?
Parem, parem, parem? Raios que partam o homem,
Afinal o que é que ele quer? Já não pode mais,
Eu também já não posso mais, ninguém pode mais,
Vai dormir camarada ou eu ponho-te a dormir
Estás podre de bêbado, ti no ni no ni no ni no ni,
Nem as sirenes se sobrepõem à voz do homem,
Que à noite continua a gritar-se e arrancar os cabelos da nuca,
Nuca maluca, porque sabe, que poucas horas faltam para a manhã
E os manicómios privados não tardam a abrir as suas portas de saída,
Todos os malucos sairão à rua, todos os malucos saem sempre à rua,
Vêm e vão, vêm e vão, vêm e vão, e nunca param, não há tempo para parar
Parar é ver que faltam paralelos, parar é ver o sinal que está quase a cair
Oh filha despacha-te, deixa lá o pequeno-almoço, caramba
É todos os dias a mesma coisa,
É todos os dias a mesma coisa.

Savante

1 comentário:

Marta Madureira disse...

Parecia que ouvia a tua voz enquanto lia o texto...
Tem a tua cara, Ines!