sábado, 10 de maio de 2008

Apatia


Dalila descia a rua. Como sempre faz. Está quase atrasada, mas não se importa. O patrão é um cabrão que lhe baba as pernas, e pensa que ela não repara. Ou se calhar sabe, o que é ainda pior.
Antes de sair de casa, Dalila pôs perfume e blush no decote. Não é, claro, para o patrão, nem é para homem algum, é para ela mesma. Que cada dia que passa se sente mais morta. A mãe também o acha, pelo menos é o que lhe está sempre a dizer.
- Tens comido bem? E dormido?
- Tenho mãe.
Vivido bem é que não. Mas isto não lhe diz, há coisas que não se diz ás mães, aos pais, ou aos padres. Porque a resposta que eles lhe dariam é que ela tem duas mãos e dois pés, graças a eles e a deus, para ela deixar de ser preguiçosa e se fazer à vida.
Mas a vida de Dalila parou, descarrilou, tirou férias e não deixou contacto em caso de emergência. Não é que ela se importe. Encolhe os ombros quando se vê ao espelho. Encolhe os ombros quando recebe o cheque de fim de mês, encolhe os ombros quando lhe ligam, quando não lhe ligam. Não há chamas dentro dela, muito menos bombeiros. Ela acorda, veste-se com a roupa que nem lhe parece dela, desce a rua, apanha o 704, sobe a rua, vai para a loja aturar o gordo do patrão, almoça sozinha no café que faz esquina com a casa de discos, vai para loja outra vez, desce a rua, apanha o 704 e sobe a rua. É assim. Não há atalhos, companhias, super poderes.
Ás vezes, Dalila pensa como foi ali parar. Seja onde for, porque nunca está no sitio certo. Dalila tem de facto, duas mãos e dois pés, sempre os teve, e muito jeito lhe fizeram. Houve até, há uma eternidade atrás, quem lhe dissesse que o seu dom era fazer nuvens. Há quem cante, há quem dance, há quem saiba sempre o que dizer, há quem se saiba rir. Dalila fazia nuvens com as mãos, pronto. Ela acreditou e não se arrepende disso, porque de certa forma, há um eternidade atrás, se calhar ela até era capaz. Pelo menos para o homem que lhe dissera isso. O que a magoa é as nuvens terem desaparecido (visto que as mãos ainda lá estão). Para onde, é que ela não sabe, provavelmente para as profundezas dela, para o mesmo sitio que vai a juventude ou as memorias quando são esquecidas. Mas as nuvens terem desaparecido não significava que os dias eram de sol. Dalila apercebeu-se disso fazia muito tempo, e mais uma vez encolheu os ombros.
Quando era ainda criança esperava pela sua fada-madrinha ou pela Leopoldina que a levaria ao reino encantado dos brinquedos. Quando era adolescente fantasiava com o seu príncipe encantado de um metro e oitenta e seis e musculado, não tinha um cavalo branco mas uma moto toda xpto, não tinha, na realidade, um condado, mas tudo á sua volta comportava-se como se ele pudesse mandar. Quando era jovem, costumava fantasiar que se ia casar na igreja da terra da avó. É uma igreja impune, no meio da praça. Ao fundo consegue-se ver o mar, e se o vento vier de oeste consegue-se até cheira-lo.
Mas hoje é o trigésimo oitavo aniversário de Dalila. E a fada-madrinha lá deve ter entrado no comboio errado, o príncipe encantado nunca passou de sapo e nunca ninguém lhe deu um passaporte para a igreja da terra da avó.
Por isso, em nome dos trinta e oito anos, Dalila põe simplesmente perfume e blush no decote. Afinal Dalila tem um super poder: a invisibilidade.
- Enfim, que é que se há-de fazer?
- Pois é, mãe. O que é que se há-de fazer?

Sem comentários: