quarta-feira, 22 de abril de 2009

Para lá do que se vê.

Com a ausência que tu arrastas,
Nessa timidez das palavras, que não são prosa ou poema,
São um vomitar de sentimentos baços.
Como o teu apelido a fazer-me de nome,
E eu a escreve-lo com a mão esquerda,
E ele a sair-me pela boca, como um suspiro de tédio, de hábito.
Porque o nariz, esse está partido.
(- respira. É o suficiente.)
E o ar a doer-me, a queimar-me os pulmões.
E tudo morto, tu morto de olhos esbugalhados, eu morta a respirar pela boca. Mas tudo me dói, como tu a marcar o tempo com a biqueira do sapato. E o tempo a estender-se para lá do que se vê.
Mas ninguém nos vê, ninguém nos ouve.
Eu queria que soubesses que me fazes falta, que eu tenho saudades das tuas mãos, dos teus pulsos, dos teus cotovelos.
Eu queria dizer, para o caso do tempo te ter amordaçado as memórias, que eu sou tua. Para lá do que se vê. Do que se sente. Para lá do que eu alguma vez te mostrei, desculpa-me a falta de paixão, as mentiras que eu te deixei no bolso. Quase vertigens dos rumores que ouvimos.
(- foi ele a ela. Porque nunca, nunca ele a amou.)
E o teu nome, um gatafunho na pele, em desejo da carne ou mais que isso, o que está entre a carne e o osso, mas nunca mais que isso.
E o cabelo dela (o que viste nela, para além da carne?) a chamar por ti.
(- que mentiras traz o teu tome? - Nenhumas, nenhumas, que disparate.)
E um ponto de exclamação a fazer-me de funeral, e os olhos a voltarem-se e eu um ponto de interrogação, perdida nas batidas das biqueiras do teu sapato. Não durante horas, mas durante o tempo de uma vida e o que vai para além dela. Para lá do que se vê.
E uma carta no correio, e depois debaixo da almofada e depois só uma lembrança levada pelos braços da juventude. Mas o cheiro do papel e da tinta ás vezes lamenta-se pelos caminhos da saudade. E as coisas insignificantes, como o azul do colarinho dos fatos de domingo, surgem como por uma janela, embaciados pelo tempo, tatuados a lápis. O azul do teu colarinho não a marca do batom. O cheiro do colarinho, não o pescoço a pulsar por debaixo.
Que saudades dos teus colarinhos, da realidade deles. De tu ires para a guerra e a cabeça rapada. De tu voltares da guerra e a cabeça estragada. E os lençóis puxados para trás, não para arejarem, mas para arrefecerem.
(- sabes, as memórias são cobertores para o coração? Eu sei que sabes.)
E eu a não saber nada, por causa do alzheimer que a tua ausência me obriga, com os olhos trocados, presos ao chão.
(- mãe, não me deixes.)
E a mãe para lá do que se vê a pedir desculpa da terra, a comer a terra.
(não, a terra a come-la a ela.)
E as coisas que são insignificantes de mão dada connosco para lá do que se vê.

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