quarta-feira, 10 de março de 2010

Mensagem 235


E de repente, é tarde de mais. E de repente, tu não estás mais debaixo dos lençóis, a puxar-me a almofada e é manhã mas as persianas estão fechadas, e é sábado e eu estou a jantar sozinha. E é manha outra vez e eu tenho frio, eu disse-te que tinha frio sem ti?, eu disse-te que a pele dos teus pés é áspera? Fazem-me lembrar as mãos do meu pai quando ele segurava nas minhas. Aos domingos de manha, com o Douro a passar-nos ao lado, a esquecer-se de quem nós somos e de que ele é nosso.
E de repente,
- É tarde de mais.
E eu, que parvoíce, a pedir-te para ficares. Agarrada aos extremos de que nós fomos, a atirar-te à cara os nossos primeiros dias, a primeira vez que fomos o que já não somos – e se o fomos alguma vez, como o deixamos ir?,
E depois tu bateste a porta e a fechadura caiu com a força, eu berrei-te da janela, que parvoíce vês?, e tu entraste no carro. Tu voltaste duas semanas depois, eu encontrei-te cá em casa com duas malas semi-cheias em cima da cama, a explicar que encontraste a porta aberta,
- Tu fodeste a fechadura.
Tu a encolher os ombros, como quem não quer saber – mas a porta também ainda é tua, sabes? Sinceramente, tudo aqui ainda é teu, e não, não penses que é, com duas malas de merda que levas tudo – fizeste da tua roupa um monte que atiraste para dentro da mala, levaste as tuas garrafas de wiskey que guardávamos debaixo da cama, a tua escova de dentes e a lâmina de barbear. Fizeste tudo isto sem olhar para mim, sem parar ao meu lado. Eu segui-te pelo corredor de volta ao quarto, depois até ao quarto de banho nos fundos, de volta ao corredor onde reviraste as gavetas do móvel que a minha tia me deu, e depois ao quarto. Todo o tempo em que te segui as costas não me pareceu real, até que ponto a loucura me tomou de arrasto. Quando fechaste as malas:
- Cheira mal. Tudo cheira mal, o quarto e a sala. Até o elevador lá fora cheira mal. Cheira aos dias seguidos que nos fechamos aqui dentro, sem ver o sol sem ver uma pessoa. Cheira aos dias em que tu queimavas o pão, foda-se tu queimavas sempre o pão, ou cheira como daquela vez que queimei o cortinado com o cigarro. Cheira a ti sobre mim, sempre sobre mim, ao vapor do banho. Cheira mal, não sentes?
Os teus pés são ásperos. O teu cabelo sabe a verão. Tens um sinal na parte detrás do pescoço e outro na parte de dentro da anca. São exactamente do mesmo tamanho. Exactamente.

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