quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

by my side


Ao morrer bati-te a porta dos sonhos, mas os teus sonhos não me pertenciam e eu tive que esperar, eu tive que esperar que a minha ausência fosse sentida.
E quando finalmente foi, eu estava sentada a uma mesa de café quando tu entraste com o olhar perdido e me viste.
E todo o teu corpo estremeceu. Eu estava morta, mas parecia tão real. Com um sorriso pintado, a camisola verde que tu sempre gostaste, e até a forma como eu bebia o chá parecia-te certa de mais. E porque a imaginação tem destas coisas tu viste-me viva, o meu peito cheio de ar, os meus olhos aguados, os meus dedos vivos.
Tu viste e eu vi uma lágrima a molhar-te o lábio:

- Mas tu estás morta.
Foi assim. As primeiras palavras que eu ouvi na outra vida, com um tom de aceitação. Eu encostei-me ás costas da cadeira:
- Pois estou, já estava quando o médico me dizia viva, o meu peito não batia e não havia amor em mim.
Tu fingiste não ouvir, porque o sonho é teu e não meu.
- Como é morrer, como é estar morta?
- A morte é solitária, esfumada. E não temos mais nada para fazer que para além de pensar na vida que fizemos. Revemos tudo, até o que foi um dia invisível. Quando morremos o nosso corpo não mexe, não reage, nós dizemos “corre” e ele geme de preguiça, nós dizemos “foge” mas não há lugar nenhum para ir. A morte é redonda, e a nossa alma faz o papel de corpo, mas a grande diferença é que não se veste ou se maquilha a alma, ela é o que é, ela é os teus erros, o que tu deste de bom, o que tu roubaste, ela é quem tu foste em vida e está agora aos olhos de todos. E aqui, na minha morte, não há forma de não ter vergonha, não há comparação com almas alheias, os teus erros são o teu peso e a gravidade é de uma força absoluta.
- E o céu? E o céu que nos é prometido? E a eternidade pacifica que nos foi descrita?
Os teus olhos são de um vermelho isente, como se o medo da morte fosse uma dor consumida. Porque o sonho é teu, mas na verdade eu só te quero bem eu quero que tu tenhas a vida que me foi negada, eu digo-te com a mesma voz que tu ouvias:
- Não tenhas medo, porque no céu já tu estás. O teu corpo move-se, o teu riso ouve-se, as pessoas olham-te nos olhos. E mesmo que por vezes sintas o contrário, tu estás viva. E estar vivo significa ter hipótese. De ser, de ter, de ver, de tocar. Significa também sofrer, eu sei, mas por favor não te esqueças que o teu corpo é teu, que a tua vida é tua, foi-te oferecida a ti, e tu podes eleva-la ao que tu quiseres. Não te esqueças que a morte é certa, não tenhas medo de viver, de amar. Não sofras demasiado, não ignores demasiado, impõe-te.
A minha mão morta toca-te e é fria, a minha pele é dura mas não tem peso, e tu apercebeste que quase não a sentes.
- A tua mão está tão fria.
- Devias ver o meu coração.
- És mesmo tu, não és? Isto não é um sonho, és mesmo tu. Não é a minha necessidade de te saber bem, és mesmo tu que me respondes, és mesmo tu que me tocas.
- Eu serei sempre eu, morta ou viva. O que eu sou será sempre propriedade minha. Mas isso não te impede de me ver de outra forma, não te impede de me imaginar uma pessoa diferente, para o bem ou para o mal. Mas se fosse realmente eu que te dou a mão por cima desta mesa de café, eu teria de ter feito uma viagem imensa, ultrapassado anos, milénios da terra. Teria de ter visto tudo, porque sabes?; o mundo dos sonhos é vizinho do mundo dos vivos e o sitio que eu estou é longe, longe de tudo isso. Para te visitar eu teria de ter vindo das profundezas do universo, visto cada estrela e com a minha alma cansada batido á porta dos teus sonhos. Mas a verdade é que eu faria tudo isso para te ver só mais uma vez, por isso talvez seja realmente eu mas talvez não.
- Desculpa os males que eu te fiz, para não chorar tanto fiz-te chorar. Se eu pudesse dava-te vida de volta. Mas eu não posso e sei-o.
- A culpa não é tua, e nunca será, porque a culpa não muda de dono. Enquanto me continuares a abrir a porta dos sonhos eu venho-te dar a mão. Eu vou continuar a dizer-te que vai tudo ficar, mas com dias adversos. E que a morte é um fim de algo complexo, mas a continuação de algo muito mais complexo e necessário.
As lágrimas correm-te dos olhos, como vítimas perseguidas, mas as minhas lágrimas são abafadas pela dor da aceitação. Eu aceito.
- E essa complexidade passa por Deus?
- Esta complexidade começa em deus e na sua ausência. Porque apesar de parecer o contrário a morte não é silenciosa, e deus como Pai absoluto deseja ser surdo. Ouve-se tudo, todos os mínimos barulhos do universo. Mas mais que tudo ouve-se o choro da terra, as tempestades dos oceanos, as profundezas das raízes, o lamento pela sobrevivência. Tudo berra: as pedras, a areia, o vento e as folhas. E quase tão alto como o planeta berram os Homens, num berro que por vezes é uníssono. Eles berram “sexo”, eles berram “justiça”, eles berram “dinheiro”, eles berram “amor”. Todos querem ser amados, mas não sabem – e como podem saber se estão vivos? – que o amor também tem de ser dado. Que o amor é quase uma troca por troca e vem por todos os lados, os pais tem de saber que tem de amar os filhos para eles os amarem, o homem tem de amar a mulher para a mulher o amar. Mas se queres saber a verdade, eu vejo almas nuas e não há pecado mais duro que o trair de um amor verdadeiro, usar o amor incondicional para alcançar objectivos pessoais. O amor nunca será algo individual, se o for a tua vida será solitária. E por isso digo-te que Deus é ausente, porque mesmo Deus é pequeno para tanto mal, para tanta inveja, para tanta falta. Desculpa-O porque, na verdade, até Deus é pequeno.

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