domingo, 18 de janeiro de 2009

It's typical to cling to memories you'll never get back again


E quando os olhos deixarem de serem janelas partidas,
Para as paisagens que afinal eram telas,
(Mas tu nunca te pareceste ralar)
Da tua herdade perdida,
Da casa dos pais dos teus avós e
Do cão que era cego de um olho.
O cão morreu nas contas dos dias,
Um dia chamaste por ele e ele não veio.
Ele vinha sempre.
Os pais dos teus avós passaram a olhar-te pelas fotografias aos cantos da casa,
Sempre a olhar-te mas nunca te falavam,
E tu eras pequeno o suficiente para achar que era de propósito.
Com os sorrisos que não eram sorrisos, mas primos afastados,
Sorriam pela eternidade, enjaulados em fotos mais idosas que eles mesmos.
E sorriam quando havia motivo e quando não havia, a mãe da tua avó com um lenço na cabeça e mão na anca, a sorrir para alguém que tu não vias.
E os teus avós nunca te fizeram a sopa,
Mas ensinaram-te a estar calado,
Como ensinaram ao cão que um dia não veio.
(um dia, também eu e tu)
E tu aprendeste a falar com as fotografias que te procuravam com o olhar perdido, estendido nas paredes.
E eram os pais dos teus avós que se faziam de amigos,
Mas eles mal te olhavam nos olhos,
Mas sabiam sempre o que dizer porque nunca diziam nada.
Eram amigos de cores acinzentadas, amareladas, que como tu, não podiam falar.
Mas riam-se de ti numa piada intemporal que tu nunca entendeste
(ainda hoje os olhas, sem entender)
Quando eras pequeno, pequeno o suficiente, rias-te tu deles, porque enquanto tu saias pela porta da casa da herdade, (a casa que eles ergueram) eles consumiam-se pela cor dentro das molduras, doentes de tédio, doentes da morte.
E o cão vinha contigo, sempre um passo á frente de ti, tu que aprendeste a falar sem ninguém te deixar, falavas com o cão e com as coisas. Fossem elas fotografias secas ou pedras do riacho.
E elas respondiam-te com a voz das coisas, mas não te faziam companhia,
Porque as coisas são invejosas, e preocupam-se com o durar delas e não mais ninguém.
Na forma em que nos fazem querer tê-las, mesmo quando não precisamos delas.
(e é tão raro precisarmos delas).
E as fotos ainda hoje te olham, da casa da herdade que deixou de ser tua quando partiste para o Porto.
E a casa não é tua, mas chama por ti,
E tu chamas por ela sem falar,
Pela tua avó que um dia também deixou de vir,
E pelo teu avô que morreu num hospital (ele que odiava hospitais)
A olhar para o tecto, proibido de falar pelo cancro na língua,
Mas sem ninguém para falar.
Tu seguraste no caixão e levaste-o de volta a casa,
Para debaixo da terra que era dele e dos pais dele.
Para junto dos pais dele.
E também ele passou a ser parte de uma foto, que vivia para além dele.
Ele sem sorrir, sério com o cão cego de um olho aos pés (bebé e com a vista perfeita).
O cão – o Camões, não era? – deixou de guardar a herdade e a herdade foi caindo na ausência de passos no soalho, nas portadas sempre fechadas, e nos pratos sempre guardados.
E o teu avô ás voltas na campa, e tu a descobrir a vida para além da herdade que te roubou a voz, o teu avô com os olhos perto dos teus que nunca um beijo de boas noites, nunca “o meu neto”, mas sempre com os olhos perto dos teus.
E é só isso que tu sabes, e quando fechas os olhos é isso que vês. Os olhos do teu avô.
Que agora é uma foto dentro de um baú debaixo da cama.
Que nunca te sorri mas observa-te por horas inteiras, á espera que tu descubras as verdades que ele nunca arranjou coragem para dizer mas que ainda estão perdidas na herdade esquecida.

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