terça-feira, 29 de julho de 2008

Velhos hábitos


Depois do choro e da morte chegas tu.
Sem cavalo branco ou ouro nos bolsos, no entanto, com um sorriso herdado de Deus e um olhar aceso.
Aqui ainda estamos de luto, de mãos nos bolsos e lágrimas a rolar as faces.
Aqui ainda agradecemos a Deus o ar que respiramos e rezamos para que não chova.
Mas chove, durante todo o Agosto.
E nós choramos as lágrimas que já não temos.
E nós berramos com a voz que já nos dói.
E nós adormecemos com o corpo já velho de dormir.
E um dia chegas tu,
Com a voz rouca de felicidade e um coração cheio de tudo.
E nesse dia, não chove.
Nós saímos todos para te ver a chegar e tu perguntas porque choramos.
Na verdade ninguém sabe,
Eu vi os meus avós honrar o luto e a acordar de lágrimas marcadas nos lábios, e eles viram os avós deles fazerem o mesmo.
E como a bondade e a paciência a tristeza também é genética.
E tu, com o teu sorriso de diamante dizes que vieste de longe, muito longe,
Para nos dizer que o Inverno acabou.
Desde esse dia nunca mais choveu, nunca mais o luto foi sagrado ou as lágrimas amantes.
Mas eu tenho que te admitir, de vez em quando, eu sinto falta da chuva.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Sonho matinal


Acordei ás 9 horas da manhã.
E quando entrei no teu quarto, ainda de pijama,
Tu perguntaste-me o que é que eu queria.
Mas hoje, o português não é a minha língua e tu não me pareces um ser humano.
Hoje acordei com um tremor de terra,
Um tremor de terra que só ocorreu debaixo da minha cama.
E quando dei conta de mim já estava atrasada, e tu continuavas a berrar:
“Para onde é que vais?” e “o que é que queres?”.
São 9 da manha, e ninguém devia ser obrigado a acordar assim de madrugada e muito menos ouvir alguém berrar numa língua estrangeira.
Quando chego ao pé dele, ele tem as mãos na cabeça e os ponteiros do relógio espetados nos olhos, ele sangra e sangra e sangra.
Mas não há sangue, só a ideia de que ele sangra.
E enquanto ele me diz que eu estou atrasada de uma forma bastante exagerada faz-me lembrar o meu avô.
Mas um avô que eu nunca tive ou vi.
E atrás deste avô, que não é meu, mas é velho, talvez demasiado velho, aparece um relógio gigante.
Um relógio sem ponteiros mas que se agita e canta.
Canta uma música que eu já conheci mas esqueci.
É a musica que este avô me cantava, antes de eu ser pessoa, animal ou alma.
E ele continua a avisar-me que eu estou atrasada num tom mecânico.
As duas mãos na cabeça e o cabelo castanho molhado. Inundado, até já não ser cabelo mas sim água castanha que escorre até aos meus pés.
E, repara, não é água, é fogo.
Ele agarra-me na mão e diz-me:
“Responde! Porque não respondes? Responde, responde, responde!”
Eco.
Mas como hoje a minha língua não é portuguesa, eu deixo-me estar calada, até ele entendes que eu não sei falar, escrever ou até ouvir.
E ele percebe.
Como, não sei, mas ele percebe-me.
E dá-me a mão, não a agarra, dá-me.
E eu aceito e ainda lhe dou a minha de volta.
E começamos andar, devagar.
Está silêncio. Ele entende-me.
E eu paro, e lembro-me de mim mesma ainda a dormir, a perder o toque da mão dele.
Coitada de mim mesma, ainda a dormir e com o terramoto debaixo da cama.
Ligo-me. Eu não atendo. Mas eu não fico preocupada e penso que sendo eu como sou, ainda nem sequer me devo ter ido deitar.
Afinal ainda são nove horas da manha.

Era uma vez...


E assim foi,
A injustiça da solidão,
Os parâmetros da indiferença,
A carne que seca ao sol,
E as palavras que secam os dias de chuva.
E assim foi e como se não tivesse de ser, ficou,
Lambeu o chão em que te arrastas e as feridas que te fazem sangrar,
As mesmas feridas que não cicatrizam sobre verões e Invernos.
E tu disseste que não, berraste e fizeste crer que não havia motivos para ficar.
Mas mesmo assim ficou.
Apesar das trovoadas, das tempestades, de Deus e dos mortais berrarem-lhe aos ouvidos que não.
Ela ficou.
E deitou-te a cabeça no colo que é ventre e falou-te de tempos vazios e de outros cheios. Mas sempre com uma tristeza presente na voz e nos olhos pretos.
Uma tristeza profunda e dorida.
Mais uma cicatriz.
Uma que tu nunca lambeste ou beijaste.
Mais uma, portanto, nos olhos pretos que te olharam e
Nas mãos compridas que te tocaram.
E depois, partiu.
E assim foi,
Mais uma história de amor.
Sem suspanse, sem morte, sem promessas.
Ela foi e tu ficaste, com saudades do riso agudo e triste,
Dos óculos de sol enormes na cara miúda.
Dos pulsos morenos e das pestanas escuras.
Ela foi, e com ela levou os fim de tarde debaixo do limoeiro.
Os sorrisos mútuos e os desenhos assinados por ti.
E assim foi,
A alegria de não estar sozinho,
A dor que nasce com a nossa alma,
Os odores distantes que são primos dos nossos conhecidos.
Os apelidos que ficam no ouvido.
Perdidos, escondidos.
E assim foi.

Oração


Senhor,
Cuide do amigo que de mim tirou e ame-o.
Ame-o ainda mais do que eu amo.
Guarde, no céu que é seu ventre, lugar para mim.
Devolva, ao amigo que me é sangue, a alma que lhe roubou,
Dê-me forças e vida para continuar no caminho que é do seu agrado e,
Dê-me ainda memória e saúde para não esquecer a grandeza do que de mim arrancou.
Deus do céu e da terra,
Cuide do que de meu está hoje na sua casa,
E diga-lhe que, mais cedo ou mais tarde, eu lhe farei uma visita eterna.
Diga-lhe que o meu corpo, alma e mente são mais domínio dele do que algum dia foram meu.
Senhor,
Desisto hoje de lutar pelas suas vontades,
Já que, como recompensa pelos meus riscos e dores, me tira o que de mais amo.
Perdoe a minha fraqueza e arrogância em querer que a imortalidade seja então mortal.
Perdoe os pecados que eu cometo em prol da minha sobrevivência.
Perdoe a ingratidão do meu ser,
Mas compreenda que, o meu amigo eu não posso mais ver.
Cuide do amigo que de mim tirou mas que, mesmo assim, em mim ficou.
Porque Senhor pode ter todo o poder que aclama, mas esse, nunca será suficiente para me fazer esquecer quem me conquistou.
Senhor pode ser rei e imperador dos mares e terras,
Mas nunca será imperador do amor que eu dou.
Ámen

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Resiste


Guardas nos farrapos que são tão dignos,
Mil memórias, mas,
Nunca mais eu me predirei nos teus dedos esguios,
Nunca mais eu me darei ás tuas cruéis histórias.

Deus pediu-te para não matares,
Para guardares em ti a chama,
Deus ordenou-te para não disparares,
Mas tu berraste-lhe: Homem que não mata, não ama.

Nunca mais me darei a alguém que não se pode dar de volta,
Nunca mais o teu corpo e ossos,
Serão sítio para eu descansar depois de morta.
Aos meus olhos tu serás para sempre destroços.

Nunca mais vou amar quem me mata,
Antes de me beber,
Nunca mais o teu nome será dono do meu ser.
Nunca mais a tua arma será de país algum, diplomata.

Nunca mais o teu sorriso será minha perdição.
Arrancarei os olhos para nunca mais ver,
O que resta de um homem que só causou destruição.
Nunca mais a tua mão na minha hei-de ter ou querer.

Deus soprou-te na alma palavras de piedade,
E tu fizeste-te de mudo e mataste.
Oh, mas esqueceste-te que Deus é vida e divindade.
E todo o teu mundo, tu próprio secaste.

Nunca mais. Como poderia eu mais?

Que mais?


O teu corpo na minha alma,
Mas eu não decifrei o que ele dizia.
A tua dor, na palma da minha mão.
A implorar por aconchego.
Os teus dedos no meu cabelo,
A pedir atenção.
Os teus olhos nos meus olhos,
A pedir que eu visse os teus segredos.
Mas eu não vi.
Não por não querer,
Não por não gostar.
Mas por ser cega
E desprovida de qualquer outro sentido.
De qualquer outro sentimento.
Pedi-te para te ires embora,
Mas porque te queria aqui.
Porque queria que tu dissesses,
Que querias ficar.
Queria-te ver sacrificar por mim.
Como eu me sacrifiquei um dia por ti.
Pelo que o nosso amor criou.
Criou dentro do espaço que nós inventamos.
Com dedos e mãos.
Como se fossemos Deuses ou Criadores.
E o pior: é que fomos.
Fomos sem ter consciência que podíamos criar algo que mataria,
Criamos um corpo que serviu de arma,
Arma que nos torturou com a dor sufocante da saudade,
E que no fim,
Nos matou.
Sem piedade ou compaixão.
Viu-nos suplicar,
Agarrar o ar com as mãos,
Os nossos olhos embaciarem
E o nosso corpo enfraquecer.
Viu sem hesitar.
Viu sem, da vida que ali se escondia, sentir pena.
A chuva caiu no meu corpo
E a arma que nós criamos,
Tornou-se canhão,
E perfurou o amor que nos alimentava.
Mas não faz mal.
Não é dor que eu não possa aguentar,
Porque antes de eu fechar os meus olhos pela ultima vez,
Eu vi o teu rosto.
Antes de morrer, eu vi-te. Que mais posso eu pedir?

terça-feira, 1 de julho de 2008

Devagarinho


Devagarinho, dizia eu há uns anos para cá.
Dizia e escrevia-te nas cartas que nunca leste.
E talvez assim tenha sido melhor, se as tivesse lido talvez te tivesses rido.
Rido de mim e do “nós” que eu apelidei,
Que eu aclamei do alto do universo e jurei nunca esquecer, nunca largar.
Devagarinho, pedia-te eu.
Um “eu” mais novo, mas não obrigatoriamente mais inocente.
Um “eu” que eu não reconheço, mas sei que te amou pelas cicatrizes.
Um “tu” bem mais novo, bem mais inocente, que me lia Pessoa em voz alta e tocava musicas alegres na viola.
Tocava devagarinho, tal como eu pedia.
Quando te enganavas, começavas do princípio, e eu dizia-te para teres calma, que não tínhamos pressa. Não havia ninguém a nossa espera no mundo.
Só eu e tu.
Um monte de livros ao canto e a viola.
Só.
O devagarinho dos teus gestos perdeu o medo.
E os gestos que antes me embalavam passaram a acordar-me durante a noite.
A não me deixar dormir.
"Devagarinho", escrevia-te eu nas cartas de amor.
Parvas, estúpidas, embebedadas em promessas.
Prometia-te tanto. Prometi-te o meu corpo e a minha alma durante a eternidade.
Prometi-te passado, presente e futuro.
"Devagarinho" berrava-te eu. Berrava-te sem respirar.
E tudo á nossa volta se mexia à cem/hora.
Tudo corria, tudo rugia, as faces de quem nós amávamos eram caveiras.
Os corpos que nós abraçávamos eram cadáveres.
Morto. Tudo estava morto.
A viola tornou-se muda. O pôr-do-sol cinzento.
A televisão falava e entrava-nos dentro da alma como droga.
As pessoas riam-se na televisão, choravam, corriam, falavam.
Cada vez mais alto, cada vez mais longe.
Eu era nova, mas não era inocente.
Tu não eras novo, mas eras inocente.
Tu lias-me Pessoa e as palavras nadavam á nossa volta.
Como insectos, como borboletas.
Não paravam ou descansavam.
Éramos novos.
Ainda o somos, mas estamos gastos.
Não temos rugas na pele, mas sim na alma.
Cansados de nada, afinal.
As cartas de amor que eu te escrevi não dizem nada,
Estão vazias.
Cheias de nada.
Tu nunca as leste, nem eu alguma vez li as tuas.
Mas aposto que são também vazias.
Sem respostas, sem vida.
Tivemos um amor como os de antigamente: excessivo, assassino, curto.
Um daqueles que foram a tinta de épicos.
O sangue de poetas.
Daqueles amores que se perderam na industrialização dos homens.
Amores imortais, que assistiam de mãos dadas e calados ao matrimónio de Deus e do Diabo.
Amores que fazem os vulcões entrarem em erupção. Que fazem o mundo girar ao contrário.
Amores que Fernando Pessoa não fala, mas Camões sabe de cor.
"Devagarinho" dizia-te antes de te beijar.
"Rápido", sussurravas tu, depois de me beijares.