terça-feira, 1 de julho de 2008

Devagarinho


Devagarinho, dizia eu há uns anos para cá.
Dizia e escrevia-te nas cartas que nunca leste.
E talvez assim tenha sido melhor, se as tivesse lido talvez te tivesses rido.
Rido de mim e do “nós” que eu apelidei,
Que eu aclamei do alto do universo e jurei nunca esquecer, nunca largar.
Devagarinho, pedia-te eu.
Um “eu” mais novo, mas não obrigatoriamente mais inocente.
Um “eu” que eu não reconheço, mas sei que te amou pelas cicatrizes.
Um “tu” bem mais novo, bem mais inocente, que me lia Pessoa em voz alta e tocava musicas alegres na viola.
Tocava devagarinho, tal como eu pedia.
Quando te enganavas, começavas do princípio, e eu dizia-te para teres calma, que não tínhamos pressa. Não havia ninguém a nossa espera no mundo.
Só eu e tu.
Um monte de livros ao canto e a viola.
Só.
O devagarinho dos teus gestos perdeu o medo.
E os gestos que antes me embalavam passaram a acordar-me durante a noite.
A não me deixar dormir.
"Devagarinho", escrevia-te eu nas cartas de amor.
Parvas, estúpidas, embebedadas em promessas.
Prometia-te tanto. Prometi-te o meu corpo e a minha alma durante a eternidade.
Prometi-te passado, presente e futuro.
"Devagarinho" berrava-te eu. Berrava-te sem respirar.
E tudo á nossa volta se mexia à cem/hora.
Tudo corria, tudo rugia, as faces de quem nós amávamos eram caveiras.
Os corpos que nós abraçávamos eram cadáveres.
Morto. Tudo estava morto.
A viola tornou-se muda. O pôr-do-sol cinzento.
A televisão falava e entrava-nos dentro da alma como droga.
As pessoas riam-se na televisão, choravam, corriam, falavam.
Cada vez mais alto, cada vez mais longe.
Eu era nova, mas não era inocente.
Tu não eras novo, mas eras inocente.
Tu lias-me Pessoa e as palavras nadavam á nossa volta.
Como insectos, como borboletas.
Não paravam ou descansavam.
Éramos novos.
Ainda o somos, mas estamos gastos.
Não temos rugas na pele, mas sim na alma.
Cansados de nada, afinal.
As cartas de amor que eu te escrevi não dizem nada,
Estão vazias.
Cheias de nada.
Tu nunca as leste, nem eu alguma vez li as tuas.
Mas aposto que são também vazias.
Sem respostas, sem vida.
Tivemos um amor como os de antigamente: excessivo, assassino, curto.
Um daqueles que foram a tinta de épicos.
O sangue de poetas.
Daqueles amores que se perderam na industrialização dos homens.
Amores imortais, que assistiam de mãos dadas e calados ao matrimónio de Deus e do Diabo.
Amores que fazem os vulcões entrarem em erupção. Que fazem o mundo girar ao contrário.
Amores que Fernando Pessoa não fala, mas Camões sabe de cor.
"Devagarinho" dizia-te antes de te beijar.
"Rápido", sussurravas tu, depois de me beijares.

Sem comentários: